"Há uns meses (largos), a Patrícia tinha uma embalagem de comprimidos para o enjoo por causa de uma viagem marítima que ia fazer. A caixa fez-me lembrar umas pílulas brancas que os meus pais me davam na infância. A maior parte das pessoas diz que enjoa por causa dos solavancos. No meu caso, eram as curvas que causavam a náusea. E como a minha família viajava, muitas vezes, por estradas onde elas abundavam, como a mítica Estrada da Beira, engolir o comprimido fazia parte dos preparativos antes da partida.
Sempre desconfiei que os meus pais não ligavam nada à posologia do medicamento e davam-me sempre uma dose maior do que a recomendável para um garoto. Se a desconfiança tinha fundamento, não o posso garantir. Mas sei que mesmo antes de a viagem começar já estava com uma sensação semelhante a uma alegre bebedeira. Escusado será dizer que, neste estado, nem sombra de enjoo durante o percurso. Acho até que a paisagem parecia mais bonita, apesar de nem sempre nítida.
Naqueles finais da década de 1970, o meu pai comprou um furgão Bedford CF 250. Na verdade, ele preferia uma Ford Transit, mas umas cheias que fizeram transbordar o Tejo e bloquearam estradas, atrasaram as entregas da Ford e lá veio uma Bedford de cor azul céu e de que ainda lembro a matrícula: DZ-26-63. Talvez por não ser tão famosa como a Transit, o meu pai ressalvava, sempre que falava a alguém sobre a carrinha, que ela não tinha motor Perkins. Um propulsor que, como se dizia na altura, "tinha dado raia".
Era em tom orgulhoso que explicava que a sua Bedford tinha motor Opel. Não sei se este era mais fiável do que o Perkins, mas recordo-me que o som de uma Bedford CF com motor Perkins parecia uma "fábrica de pregos", enquanto o motor Opel sempre apresentava uma sonoridade mais harmoniosa.
Mas esse maior equilíbrio não evitava que, no fim dessas longas viagens, tivesse dificuldade em dormir, apesar de cansado. O ruído emanado pelo engenho Opel era tal que, horas depois de chegar a casa, ainda tinha um forte zumbido na cabeça. Tão intenso que não conseguia pregar olho até aquele incómodo desaparecer.
As viagens por Portugal através de estradas mais deficientes do que as actuais também não eram muito confortáveis. A Bedford só tinha três lugares, reservados aos adultos. Bem, não eram exactamente três. É mais correcto dizer dois e meio, uma vez que o lugar central era muito obstruído por uma espécie de grande tampa em forma de caixa que dava acesso ao motor quando retirada. Ao mesmo tempo, servia de pousa papéis, normalmente reservado a importantes "documentos" do meu pai, como Totobolas, Totolotos e uma publicação que não sei se ainda existe chamada Jornal 1X2.
As crianças viajavam na parte de trás, num veículo que não tinha cintos de segurança e num tempo em que muito menos se pensava em cadeirinhas para as transportar. O mesmo é dizer, na caixa de carga, por cima de umas quantas tralhas. Quando adormecíamos, a minha tia-avó Francelina invariavelmente comentava: "Estes miúdos eram capazes de dormir nem que fosse em cima da cabeça de um tinhoso!"
Um dia, numa manhã de Outono, o percurso era entre Coimbra e o Porto, na também famosa Nacional 1, em dia do clássico futebolístico Porto-Sporting. Porém, na zona de Águeda, a roda traseira direita da Bedford começou a sair como se quisesse prosseguir, sozinha, pela berma da estrada. O problema era complexo e a viagem já só continuou na Ford Transit do meu tio Vítor.
A avaria no diferencial traseiro da Bedford ainda teve uma ou duas reincidências mais ou menos parecidas, mas depois não voltou a suceder num carro que teve uma vida muito longa e até suportou as minhas primeiras experiências como encartado de fresco. O meu pai dizia que o tal problema era tão raro e complexo que até motivou a vinda de um grupo de técnicos ingleses à Auto Industrial de Coimbra.
Felizmente, hoje já não enjoo e, quando tenho oportunidade de conduzir um bom carro, numa estrada cheia de curvas, é para mim um puro deleite."
Por Aníbal Rodrigues 13-03-2010
© Copyright PÚBLICO Comunicação Social SA
Sem comentários:
Enviar um comentário